Minha existência depende da existência do Outro (Psicanálise)

Teoria do Estádio do Espelho - Lacan (Psicanálise)
A figura simbólica do espelho também está presente na história de A Bela e a Fera. (Imagem retirada da internet)

Nas últimas semanas tive que devorar livros e artigos científicos como se não houvesse amanhã, então estou aproveitando e transformando algumas dessas coisas em conteúdos aqui para o blog. Semana passada falei sobre neurociências e como, ao contrário do geralmente se acredita, as emoções não são inimigas da razão. Já hoje trago para vocês a teoria do estádio do espelho do psicanalista francês Jacques Lacan, um dos mais importantes sucessores de Freud.

Não se assustem, vou discorrer sobre esse assunto de forma leve sem utilizar muitos jargões ou termos técnicos. A ideia é propor reflexões e despertar curiosidade.

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Já pararam para pensar o quão instigante é a nossa relação com o espelho, com a própria imagem e com a percepção do mundo a nossa volta? Eu pessoalmente sou viciado em olhar o meu próprio reflexo. Não posso passar por uma superfície espelhada sem dar aquela olhadinha básica e arrumar o cabelo, ou tirar mil selfies por dia.

A figura do espelho também está bastante presente em histórias famosas como em Alice através do espelho e o que ela encontrou por lá (1871) do autor inglês Lewis Carroll, no conto de fadas Branca de Neve (1817-1822) dos Irmãos Grimm ou na lenda de Narciso na mitologia grega.

Teoria do espelho - Lacan
Rainha má e seu espelho mágico. (Imagem retirada da internet)

Há umas semanas, participei de oficinas de poesia cujo tema de uma delas foi melodrama, um gênero presente na literatura, teatro, cinema e na TV/rádio. Uma das características dele, no cinema, é a utilização de espelhos ou superfícies reflexivas para compor os cenários. Também, as histórias geralmente retratam conflitos familiares ou amorosos caracterizados por repressão e moralidade.

A presença dos espelhos carrega uma certa ironia, os personagens estão rodeados de reflexos de si mesmos tanto nas paredes quanto nas outras pessoas, mas são incapazes de se reconhecer neles. Dentro do viés da psicanálise, isso é projeção, um mecanismo de defesa do ego que consiste em um individuo criticar e se incomodar com características ou desejos do outro que, na verdade, ele quem possui.


Outra característica interessante do melodrama é o foco na comunicação não-verbal e nas entrelinhas. Os personagens estão sempre atuando e vivendo de aparências. É o homem que posa de defensor da família e dos bons costumes, mas que trai a esposa. A religiosa que fala que devemos amar ao próximo, mas é a primeira a julgar e não ter empatia. O filme Amores Clandestinos/A Summer Place (1959) foi um dos que estudamos nessas oficinas e é um ótimo exemplo do gênero. Ele começa com um rapaz pintando a frente de uma casa, enquanto outro personagem passa por ele e diz: "Pinte direito, tudo o que queremos é uma bela fachada!". Essa frase descreve perfeitamente a dinâmica das tramas melodramáticas.

Acho curioso como muito da nossa psique está relacionada com o espelhamento, como buscamos construir e sustentar uma imagem diante das outras pessoas e obter uma validação externa. Além de essa figura mítica do espelho estar presente nas histórias e no imaginário popular no decorrer das gerações.

Estádio do espelho

Teoria do espelho, Lacan (Psicanálise)
Ilustração do livro Alice através do espelho e o que ela encontrou por lá (1871) de Lewis Carroll. (Imagem retirada da internet)

Então chegamos na teoria de Lacan. Segundo ele, nossa noção de identidade é um produto das nossas relações. O conceito de individualidade e de sujeito apenas existe e é construído pela existência d'Outro. Em outras palavras, se não existissem outros, nós não teríamos porque nos distinguir (LACAN, 1949).

A fase do espelho marca a formação dessas noções na psique de um bebê. Nos primeiros meses de vida, a criança não sabe distinguir seu corpo do restante do mundo, não o percebe como uma unidade e também não consegue reconhecer seu reflexo diante de um espelho. A mãe é vista como uma extensão de si mesmo e o bebê acredita que sempre que ele precisar, suas necessidades serão atendidas. Na teoria lacaniana, esse período é definido como narcisismo primário ou fase de indiferenciação (LACAN, 1949).


Após os 6 meses de vida, o bebê passa a se interessar por sua imagem refletida, mas acredita se tratar de outra criança. Com o tempo, ele vai reconhecendo os reflexos de seus pais/cuidadores e das outras pessoas até que, finalmente se dá conta de que o outro bebê se trata dele mesmo. Nesse momento, o pequeno indivíduo é tomado de felicidade e encantamento. Ele se apaixona pela imagem que vê e pela sensação de completude que ela proporciona (LACAN, 1949).

Entretanto, a criança se confunde. No reflexo ela vê um individuo completo, mas, na prática, ela mal consegue andar ou falar. Essa incompatibilidade entre as duas percepções desencadeia uma crise em que em alguns momentos ela se identifica com o reflexo, em outros não. O estádio do espelho se encerra quando a criança percebe na validação de seus pais/cuidadores a confirmação de sua identidade (LACAN, 1949).

É importante esclarecer que a figura do espelho não representa apenas o reflexo físico, mas também a construção da identidade com base na comparação com os outros, ou seja, as outras pessoas também são espelhos para o bebê (LACAN, 1949).


Conclusão

Essa teoria do Lacan nos mostra como de fato somos seres sociais dependentes dos outros e não há como escapar disso. Sabe aquelas frases clássicas geralmente ditas por celebridades famosas: "Eu me arrumo apenas para mim"? Percebemos que esse pensamento é equivocado a partir do momento que se não existissem outros por que alguém iria querer se arrumar?

Nossa identidade é construída com base na existência e na validação externa e somos movidos por isso. A forma como nos portamos, falamos, agimos, nos vestimos, os gostos que construímos, etc. Todas essas coisas têm o objetivo de comunicar e não existe comunicação sem um receptor. Diante disso, talvez seja mais saudável partir do pressuposto que nunca seremos capazes de agradar a todos e devemos conviver com isso do que da noção equivocada de que não precisamos da aprovação de ninguém.

E você? Se arruma apenas para si mesmo? Comentem o que acharam nos comentários e se vocês gostam desse tipo de conteúdo 😇

[Atualização 04/09/2019:

Algumas pessoas chamaram a minha atenção para o fato que Lacan diferencia o outro (inicial minúscula)  e o Outro (ou Grande Outro) grafado com letra maiúscula. Procurei não discorrer sobre esses conceitos porque queria deixar o texto simples e acessível para leigos, porém, vou comentar brevemente a diferença.

O termo com inicial minúscula se refere a outros indivíduos como nós, isoladamente, enquanto o Grande Outro diz respeito a todos os conjuntos de relações do mundo a nossa volta, compostos de vários pequenos outros, que constroem a nossa identidade.

Lacan também propõe uma distinção entre o eu "je" e o eu "moi", termos franceses cuja tradução aproximada seria "eu" e "mim", respectivamente. O moi é o ego da consciência, enquanto je é um eu anterior a ele que Lacan define como sujeito do desejo ou sujeito do inconsciente, é ele que é constituído no estádio do espelho.]


Teoria do espelho - Lacan (Psicanálise)
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Referências

  1. LACAN, J. (1949). O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos revela a experiência psicanalítica. In: ______. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 96-103.



Comentários

  1. Acho que se não houvesse mais ninguém eu ainda gostaria de me arrumar pra me sentir limpa, linda, leve, feliz, de acordo com a minha personalidade ou meu humor. Não é sobre ser aceito, é sobre se sentir bem. Mas também entendo essa abordagem do espelho pra mostrar uma personalidade secreta que aflora, pra manipular ou influenciar. Sei lá... É um tema complexo.

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    1. A questão da teoria do espelho não é necessariamente sobre aceitação, mas sobre compartilhar e comunicar. Ou seja, quando nos arrumamos e somos vistos por outras pessoas, isso faz sentido porque estamos comunicando nossa personalidade e nossa identidade através das nossas roupas e/ou nosso cabelo.

      Se não houvessem outras pessoas no mundo, nós não sentiríamos necessidade de se vestir do jeito x ou y porque não estaríamos comunicando nada a ninguém.

      É complexo, mas bem interessante. Obrigado pelo comentário ❤

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  2. oi!
    Eu achei bem interessante, eu não sou de ficar me olhando no espelho. Confesso que teve uma fase na minha vida que nem chegava perto do espelho. Mas acredito que é impossível viver só, precisamos de alguém em nossas vidas.

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  3. Olá,

    Seu post está muito interessante e nos faz refletir sobre muitas coisas, e em como nossa existência de fato está atrelada a existência do outro. A analogia do se arrumar realmente faz todo sentido, pois se não existissem outras pessoas, de fato não iríamos nos arrumar, já que não seria algo necessário. A abordagem do espelho foi bem interessante e ainda não a conhecia. Espero que possa trazer mais posts assim.

    Beijos!

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    1. Com certeza, a forma como nos vestimos é uma forma de nos comunicar com os outros.

      Beijos ❤

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  4. Tema bem diferente e complexo, nunca parei pra pensar no assunto. É fato que a maneira como nos arrumamos diz muito sobre nós.

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    1. Com certeza. Eu vejo a moda como uma forma de se expressar ❤

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  5. É uma reflexão válida e bem pertinente. Eu sempre converso com um amigo psicólogo sobre essa interação com o outro e com o Outro. Acho interessante essa questão de não fazermos nada apenas por nós, porém acho que existem falhas nesse conceito. Apesar de sermos seres sociais e que tem a necessidade de interação, ainda temos a individualidade e por não colocarmos ela à prova, acaba ficando uma questão empírica o ''arrumar-se pelos outros, pois se não houvesse outros não haveria necessidade de se arrumar''. A comunicação gera a necessidade de um meio para que isso aconteça, porém nunca tentamos deixar isso na esfera pessoal. Sempre atrelamos com a necessidade de um outro. Quando na verdade, é necessária a comunicação conosco, a efetivação do egocentrismo, para que assim o EU REAL possa ser encontrado e só aí é que entra a questão ''quero eu comunicar essa faceta com outros''? Mas é um debate que gosto de realizar e sinceramente gostei do seu texto.

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    1. Eu achei muito legal seu ponto de vista, você parece conhecer bem essa teoria. Eu acredito que uma coisa não anula a outra. Talvez seja uma questão de equilíbrio mesmo. Não negar a nossa necessidade do Outro, mas também não viver apenas em função da opinião de alguém. Acho que a questão é valorizar os "outros" certos.

      Obrigado pelo seu comentário ❤

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  6. Guri!... Simplesmente me apaixonei pelo teu texto. Super rico em detalhes! E sim...concordo plenamente com você quando o assunto é nossa visão diante do espelho. Muitas vezes me arrumo para os outros e esqueço o que eu mesma quero. Precisamos refletir em todas as questões que você abordou aqui, como por exemplo "sermos religiosos e não termos empatia". Parabéns mesmo! Traga mais conteudo como esse aqui! bjus

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  7. Amei o post, trás questões relevantes de 'olhar para si mesmo antes de olhar para o outro' , porém ao olhar para o próximo com nossos pré julgamentos estamos sim olhando para nós mesmos! E isso é realmente muito interessante!
    Infelizmente ou Felizmente, cada ser humano tem muito que evoluir na questão da analise de si mesmo, por isso na minha opinião todos deveriam fazer terapia, a terapia faz com que não só desabafemos de nossos problemas, mas principalmente faz com que nos conheçamos melhor, afinal nada melhor do que olhar para dentro e descobrirmos quem realmente somos, sem depender de um olhar externo, de um espelho.

    Gostei muito do seu post de verdade.

    Bisou bisou , Isa! ❤

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    1. Fico feliz que você tenha gostado da reflexão. Autoconhecimento é tudo de bom ❤

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  8. Fica claro que o mundo é movido a aparências, que as pessoas se arrumam para serem algo que agradem o meio em que vive e não a si. E essa situação é muito triste.

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    1. Oi! É que, na verdade, a utilidade de nos vestirmos do jeito x e y é mostrar para alguém.

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  9. Confesso que eu sempre tive muito interesse no assunto Psicanálise. Eu acho tudo o que envolve a nossa mente, realmente instigante e interessante. Espetacular essa post e o conteúdo presente nele, que você trouxe aqui pra gente! Muitas curiosidades, como o fato da figura simbólica do espelho também estar presente na história de A Bela e a Fera, e em outros desenhos clássicos. Super bacana mesmo! Achei sensacional essa teoria do Estádio do Espelho. Incrível, que nas últimas semanas você esteve devorando livros e artigos científicos como se não houvesse amanhã, e aproveitando e transformando algumas dessas coisas em conteúdos aqui para o blog. Gostei demais! Meus parabéns!
    Eu sempre costumo me arrumar para me sentir bem comigo mesma. Mas, sempre me inspiro em pessoas que admiro!

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    1. Existe um livro chamado "A Psicanálise dos Contos de Fada". Eu ainda não li, mas tenho aqui em casa. Muitas dessas histórias antigas dá para identificar esses conceitos :3

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  10. Seus posts são ótimos, parabéns e ainda bem que não usou termos técnicos, sinceramente odeio quando tem esses termos exagerados nas resenhas, nem termino de ler o artigo. Olha não sou muito de me olhar no espelho hoje em dia, já fui antes, olho mais quando estou arrumada, ou quando estou bem com a minha imagem, seja arrumada ou não. Bom domingo.

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    1. É que as teorias do Lacan são extremamente complexas. Às vezes dá dor de cabeça de ler kkk. Tentei simplificar para facilitar o entendimento, mas sem deixar nada de importante passar. Que bom que gostou :3

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  11. Aaaaaaaa adorei o texto! Legal ter citado Alice pois amo ♡ Só me fez gostar mais ainda do post!

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  12. Espero que possa trazer mais posts do tipo, achei muito interessante..

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    1. Tem outros textos de psicanálise no blog, mas vou sempre escrever sobre porque eu adoro essa abordagem <3

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  13. Gente que delícia de post seu blog. Eu sou curiosa na área da saúde mental, sou Assistente Social, nós estudamos um pouco de Psicologia mas voltada para área social, mas o estudo da mente sempre me fascinou. Amei seu post ....

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    1. Esses assuntos me fascinam também. Quando descubro coisas interessantes assim sempre procuro compartilhar aqui no blog ❤

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  14. Olá!

    O tema abordado é bem diferente, adorei. Eu adoro me olhar no espelho, principalmente quando estou com a auto-estima alta.
    Confesso que eu me arrumo mais para mim mesma, gosto de me sentir bem, mas as vezes é inevitável de pensar no que os outros irão achar do nosso visual.

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    1. É verdade, mas mesmo quando nos arrumamos para nós mesmos, o objetivo é comunicar nossa personalidade ou identidade para alguém. Fico feliz que você tenha gostado ❤

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  15. Amei o blog, gosto muito desses temas. Achei interessante o conceito da construção da identidade através do espelho, eu já tinha me deparado com a ideia quando li sobre a teoria da mente, mas quando li o titulo da materia imaginei algo mais relacionado o reconhecimento da autoexistência, o qual no meu ver é independente do outro, já que compartilho do pensamento de descartes. Eu tbm sou viciado em me olhar no espelho, e constantemente analiso qual é minha auto imagem e como me identifico e me apresento pra sociedade, nesta fachada que tento pintar dia após dia

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    1. Faz sentido! Depois que eu publiquei o texto eu fiquei pensando se o título era o mais adequado porque poderia provocar esse mal-entendido

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  16. Oiii! Como vai?? Nossa , eu estava aqui extasiada com seu post! Sobre a questão do espelho, me lembro dos bebês na creche onde sou gestoOiiira. Lá há 50 crianças entre 4 meses e 4 anos. É muito interessante como eles reagem, cada qual em sua faixa etária, aos espelhos e por se vêem diante da própria imagem. Lendo cada especificação de contos de fadas e suas relações com espelhos, lembrei-me do livro A Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettlheim. Super recomendo!

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    1. Que legal! Eu tenho esse livro, mas ainda não tive tempo de ler. Eu sou fascinado pela teoria psicanalítica. Obrigado pela recomendação :3

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  17. Recentemente em uma sessão de análise me deparei com a falha em meu espelho, por assim dizer. Isto me fez preencher um pouco mais o vazio que sentira, chegando cada vez mais perto da superfície. Seu texto me trouxe reflexões importantes, uma vez que, mulher hétero, me visto por vezes com roupas largas e fechadas. O que quero dizer é que, para mim, me visto com o intuito de ser invisível (fazendo paralelo com a depressão) e em dias mais claros, me visto com roupas ditas "femininas"; de acordo com meu estado emocional, e não para mim ou para outrem.
    Parabéns pelo texto! Linguagem clara e objetiva.

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